segunda-feira, 21 de agosto de 2017

O machismo refletido nas animações japonesas

Descrição para cegos: imagem mostra estudante japonesa sentada sozinha em sala de aula. O fundo é formado por uma grande janela de vidro através da qual aparecem árvores e a sombra de montanhas.
Por Lucas Campos

Em 2015, a cineasta japonesa Naomi Kawase concedeu entrevista ao jornal O Globo, em que disse: “O machismo está na cultura do Japão. Lá, a mulher deve caminhar atrás dos homens. Se você é mulher e não se comporta como esperam, é considerada uma insolente”. Este tipo de relato não vem apenas de pessoas nativas. Ao fazer uma pesquisa rápida no Google, é possível encontrar uma série de depoimentos em que estrangeiras comentam suas experiências no Japão e, inevitavelmente, abordam questões como machismo e sexismo.

A paulista Juliana Platero, que viveu um tempo no Japão, contou ao portal Brasileiras Pelo Mundo as surpresas que teve nas terras orientais. Uma delas diz respeito à cultura midiática. Ao entrar em uma loja de videogames, deparou-se com uma seção para adultos, onde haviam diversos desenhos pornográficos sexualizando a figura de garotas muito jovens. “Seria bom se isso ficasse apenas nas lojas de produtos adultos, porém sabemos que para uma indústria vender, tem que ter consumidor”, avaliou.
É evidente que o hentai, esse tipo de desenho pornográfico, é um nível extremo – muito embora já seja o suficiente para levantar o debate da mulher como objeto de consumo e, ainda por cima, da fetichização de adolescentes. Contudo, se pararmos um momento para assistir alguns animes (animação gráfica japonesa voltada ao público infato-juvenil) de forma crítica, percebemos uma série de aspectos que se repetem inúmeras vezes, mudando apenas o contexto e as personagens dos desenhos.
A questão me veio à mente enquanto assistia o anime Yu-Gi-Oh! Arc-V. Em um dos episódios, a irmã de um dos protagonistas estava sendo controlada pelo vilão e surpreende o irmão ao desafiá-lo para uma batalha. Ele a questiona do motivo, surpreso porque ela nunca o havia confrontado ou feito qualquer coisa sem ele. Ela, por outro lado, diz que é independente e não precisa ficar na sombra dele para fazer aquilo que deseja. Captei o subdiscurso da cena imediatamente: a mulher rebelde e independente é retratada como uma figura má e ela só voltaria a ser uma boa pessoa quando voltasse à submissão.
Outro aspecto comportamental machista que se vê com frequência em animes é o tratamento da mulher como escada para promover o protagonista ou mesmo ser o seu suporte. Ou seja, a mulher não pode assumir as rédeas e lutar de forma independente, porque está ali apenas para servir ao homem. Isso fica nítido em animes como Sword Art Online, onde a personagem Asuna, uma esgrimista poderosa, torna-se a ‘namorada’ do protagonista e a partir desse momento torna-se totalmente dependente dele, tendo que ser resgatada inúmeras vezes. Ou ainda o caso da personagem Sakura (de Naruto), uma ninja capaz de abrir crateras com o próprio punho, mas que serve para dois propósitos: sempre ser salva por um homem e curá-lo quando se faz necessário. E também a Saori, de Saint Seiya, a reencarnação da deusa grega Atena, que depende do seu exército de homens para defendê-la.
E não para aí. Animes têm o péssimo hábito de sexualizar mulheres, dando o foco de imagem para os seios e nádegas, e romantizando assédio e estupro. Em animes como Nanatsu no Taizi e High School of The Dead, são muitas as cenas onde há um foco desnecessário nas partas íntimas das personagens ou onde o protagonista toca no corpo das personagens femininas sem autorização. Os dois exemplos estão inseridos em um gênero de anime conhecido como ecchi (em tradução livre, significa obsceno), onde a obscenidade proposta é direcionada apenas às mulheres.
Podemos tocar ainda na vertente da falta de representação. Por que quase nenhum anime tem uma garota liderando ou derrotando os inimigos sem nem ao menos se cansar? Por que elas têm sempre que estar atrás observando? Por que elas são sempre mais fracas?
É claro que não devemos generalizar, existem animes onde há uma quebra dessa percepção e pasme, todos são escritos por mulheres. Sailor Moon (de Naoko Takeuchi), que se tornou muito popular no Brasil por causa da Rede Manchete, tem cinco meninas como protagonistas. A animação mostra que meninas também podem ser aquelas que salvam o dia, sem precisar necessariamente da ajuda de homens para isso.
Magic Knight Rayearth e Sakura Card Captors também são bons exemplos de animes onde garotas assumem o combate contra o mal. Isso porque é o grupo Clamp quem desenha e escreve esses animes. A Clamp é uma empresa de mangakás (desenhistas de quadrinhos japoneses) composta por quatro mulheres: Ageha Ohkawa, Mokona, Tsubaki Nekoi e Satsuki Igarashi. Em todas as suas produções, há uma preocupação especial em mostrar a força e a independência da mulher, colocando-as sob holofotes. Além disso, elas sempre incluem a proposta de sororidade, ou seja, a irmandade entre mulheres – coisa que geralmente não acontece em animes, porque meninas estão sempre brigando pelo amor do protagonista ou empreendendo uma luta de egos.
Além dos animes da Clamp, é possível citar alguns mais recentes como FullMetal Alchemist Brotherhood, Shigneki no Kyojin e Puella Magi Madoka Magica que colocam as meninas à frente, deixando claro que elas podem ser lideranças militares e salvadoras da humanidade tanto quanto qualquer homem.
Como o mundo é feito de pessoas diferentes, muitos discordam dessa problematização acerca dos animes. Entretanto, o diálogo sobre o assunto é relevante porque este é um produto infanto-juvenil consumido em escala mundial e, sendo uma mídia, tem a capacidade de influenciar, de fazer com que as pessoas pensem de uma determinada forma. Enquanto esses animes continuarem reproduzindo valores machistas, sexistas e perpetuando a cultura do estupro, haverá pessoas normalizando e reproduzindo essas violências em seus variados níveis.

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