quinta-feira, 31 de julho de 2014

Sobre o termo cisgênero, o equívoco da língua e o político na sigla LGBT

Voltando ao termo cisgênero, assunto abordado em outra postagem nossa (http://reconvexoegenero.blogspot.com.br/2014/05/o-que-sao-pessoas-cis-e-cissexismo.html), neste texto a autora explica, principalmente, acerca da necessidade de problematizar as evidências de sentidos do termo e sua aplicação política na causa transgênera. Texto divulgado pelo site http://transfeminismo.com/em 28 de junho de 2014. (Rodrigo Andrade).

Por Bia Bagagli
Descrição para cegos: imagens das representações de "masculino" e
 "feminino" são misturadas, formando um símbolo só.


         Escrevo este texto pensando o encontro que a defensoria pública realizou para falar sobre “identidades trans”, em que estavam presentes a psicóloga Bárbara Dalcanale Menêses e o assessor técnico do centro de referência LGBT, Márcio Régis Vacon como palestrantes. Ao se falar sobre transgeneridade, é urgente problematizarmos certas evidências de sentidos, na medida em que considero extremamente importante o não apagamento do político da questão transgênera. Aprendi com a análise de discurso fundada por Michel Pêcheux (AD) que a impressão que as palavras designam inequivocamente coisas e objetos no mundo se dá através de um efeito ideológico; também aprendi, contudo, que a ideologia funciona pela falha. Isso significa dizer, entre outras coisas, que o sentido, apesar de parecer evidente, pode ser sempre outro, a partir do momento em que a língua (para significar) necessita da inscrição da história, e com isso, os sentidos estão sempre já divididos pelas contradições das lutas de classes. Dizemos, portanto, que a linguagem não é transparente, já que ela não designa de forma unívoca; ela é, ao contrário, opaca.

Para a AD, a falha da língua pela ideologia se denomina equívoco. A ideologia aqui é entendida como necessária para a relação do sujeito com os sentidos, se distanciando, portanto, de concepções de ideologia como “ocultação da verdade”. É a partir de uma formação discursiva que os sentidos vão ser mobilizados através de uma posição de sujeito (um exemplo clássico para entender isso sucintamente quando, a rede Globo, por exemplo, utiliza “invasão” enquanto que um blog de esquerda, para referenciar a mesma situação, irá utilizar o termo “ocupação”; os sentidos estão divididos, e uma posição sujeito determina, neste caso, uma “escolha” diferente do léxico).
Então o que a cisgeneridade diz respeito ao equívoco da língua? O que diz respeito ao (apagamento do) político? Certamente muita coisa. Bárbara começou sua palestra “explicando” quem eram (ou o que eram?) as letrinhas da sigla LGBT. LGB são pessoas não heterossexuais, dizem respeito às orientações sexuais, e o T são pessoas trans*, diz respeito às identidades de gênero. Percebam, contudo, que essa definição, a priori, “correta”, mobiliza certas evidências, pré-construídas. Por que, ao falar sobre pessoas não-heterosexuais, sempre referenciamos pessoas cisgêneras? Quem são os (cisgêneros) gays, lésbicas e bissexuais afinal de contas? Por que o tema da identidade de gênero é sempre secundarizado (e como isso se dá historicamente, na materialização dos discursos?)?
Os LGB são sempre os homens e mulheres (cisgêneros) que se atraem por homens e mulheres (cisgêneros); enquanto que o T apenas atrapalha essa cadeia de significações. Essa é uma das evidências de sentido sobre a sigla LGBT: a tensão/contradição entre a reunião entre orientações sexuais desviantes e identidades de gêneros desviantes não é “resolvida” (ou é para mim, enquanto transfeminista, a materialização de um discurso cissexista) de forma satisfatória pela posição de sujeito cisgênera, na medida em que apaga a possibilidade de (existência do) sujeito trans*, e também apaga a própria possibilidade do sujeito trans* de ter uma sexualidade (!). Não somos destituídxs “apenas” da família, do acesso à educação e empregos, mas também da ordem significante que simboliza a sexualidade. Não temos também o direito de termos desejos! A sexualidade de uma mulher trans* em especial é vista de forma abjeta pelo discurso médico. Somos obrigadas a realizar o impossível em busca do laudo: ora performando uma identidade heterossexual legitimada socialmente, ora performando uma identidade assexual na qual nunca é suficiente, já que sempre somos passíveis de sermos desqualificadas enquanto mulher e enquanto ser humano por qualquer sinal (ou ausência) de sexualidade/gênero.
Esses sentidos desarticulam a possibilidade de resistências transgêneras, já que a própria possibilidade de humanidade nos é interditada pela linguagem. É aí que o simbólico diz respeito ao político, aliás. Afinal de contas, quem nunca se deparou com o equívoco (percebam a relação sempre com o linguístico e os significantes) acerca da orientação sexual tanto de pessoas trans* quanto de pessoas (cisgêneras) que se atraem por pessoas trans*? A pessoa (cisgênero) que namora uma mulher trans*/homem trans* é “hétero” ou “homo”? Ou nenhum dos dois? Risos!
A transgeneridade (enquanto cisgeneridade mostrada em sua opacidade significante), portanto, é uma verdadeira arma (aliás, arrisco dizer a maior delas) contra a heteronormatividade. Quem dera os gays (cisgêneros) dessem conta disso e articulassem isso politicamente… mas infelizmente é mais fácil se apegar a certas identidades essencializadas, tomadas como transparência da linguagem. Identidades essas, que dizem respeito à orientação sexual, que pessoas trans* não têm o privilégio de reivindicarem plenamente. Falar sobre tudo isso, portanto, é também falar sobre o impossível da orientação sexual, sobre suas falhas, equívocos.
Os sentidos sobre a sexualidade das pessoas trans* estão interditados na medida em que o sujeito (de orientação sexual neste caso) universal é cisgênero. E isso se dá através das evidências mobilizadas pela posição de sujeito cisgênera. Por que pessoas trans* são sempre o puxadinho (precário) da laje da significação, são sempre o Outro, que, a partir do momento (contraditório) em que se reconhece o real deste grupo até certa medida: até a medida em que a cisgeneridade é posta como ponto incontornável (e insuportável)? São sempre aqueles que sobram, são o Outro não na sua relação de alteridade, mas na sua relação de abjeção. A simbolização da linguagem de tudo o que se refere a transgeneridade (o real) pela posição de sujeito cisgênera é marcada pelo político, pelas relações de poder. Isso significa que há uma “afirmação de pertencimento dos que não estão incluídos, caracterizada pela contradição de uma normatividade que estabelece (desigualmente) uma divisão do real”, como bem define Eduardo Guimarães na sua semântica do acontecimento. E o discurso da biologia também é mobilizado por esse discurso cisgênero (designar pessoas cisgêneras como “biológicas” é um exemplo disso). E inserir o biológico na discussão é o mesmo que retirar-se do debate político.
Que existe um desconforto de pessoas cis com o termo cis não é novidade. Já falei muito disso aqui no blog. O que também é curioso é ver pessoas trans* “defendendo” a não utilização do termo cisgênero. Isso apenas nos mostra que a posição do sujeito não é empírica nem automática: pessoas trans* podem assumir esta posição de sujeito cisgênera, assim como pessoas cis podem assumir uma posição de sujeito trans* (ou transfeminista).
Vejamos certos efeitos de sentidos nos enunciados:
·         As pessoas trans* são aquelas que se identificam com o gênero oposto.
·         O homem que se veste como mulher é uma mulher transexual.
·         O que diferencia uma transexual de uma mulher é o biológico.

Nos enunciados há o efeito de pré-construído. Isso significa que algo nos enunciados “disse antes, independentemente” que atravessa o dizer e que, nestes casos, se dá sobre a forma da contradição, gerando um efeito de sentido ora paradoxal, ora transparente. Quando se define que uma “pessoa trans é aquela que se identifica com o gênero oposto” se afirma, por meio do implícito, que a pessoa trans pertence a um gênero (ela “é” alguma coisa) com o qual ela não se identifica. É aí que o equívoco se manifesta: como posso me identificar com algo que desde sempre (desde todos os dizeres, os já-ditos) eu já não seja? Este pré-construído articula dizeres anteriores que afirmam que mulheres trans* não são mulheres e homens trans* não são homens. Qual é o gênero oposto de uma mulher trans*: o feminino ou masculino? Este enunciado afirma o paradoxal: o gênero “oposto” de uma mulher trans*, a partir do seu próprio ponto de vista, é o masculino. Como poderia uma mulher se identificar com o gênero masculino? Sentidos de transparência acerca dos termos “homem” e “mulher” atuam de forma semelhante no segundo enunciado. Esses efeitos de pré-construído se dão através de um atravessamento com o discurso da biologia/medicina, no qual o desígnio de gênero ao nascer é mobilizado como evidência de que “sejamos” homens ou mulheres produzindo coerência para os termos “homens” e “mulheres”. Por isso o terceiro enunciado possui efeito de transparência. Mas aqui vai o equívoco: falar sobre transgeneridade é falar sobre o biológico? Como, então, esses enunciados podem ser tão transparentes? Como essa relação de transparência se deu historicamente? É hora de deixar para trás o “biológico” para se falar sobre (cis)generidade. Isso significa dizer, afinal, que pessoas cis não são biológicas.

terça-feira, 29 de julho de 2014

Sociedade capitalista, racismo e sexismo: a importância da autocrítica feminista

O texto a seguir promove o debate do feminismo além do gênero, levando-o às questões de raça, em que o feminismo negro é incorporado e tem papel primordial. A autora ainda critica algumas produções científicas acerca do tema gêneroe reforça a relevância para que elas sejam mais ativistas, o que seria uma forma de aproximá-las do dia a dia da mulher negra pobre, que compõe parte significativa do mercado trabalho, no qual o sistema é capitalista, sexista e racista.(Carolina Ferreira)

Divulgado pelo site Blogueiras Negras 
(http://blogueirasnegras.org/), em 16/06/2014.

Retrato de Angela Davis, em preto e branco, discursando em meio a um enrome público nas ruas.

Por  Marjorie Chaves


À medida que mais e mais mulheres adquiriram prestígio, fama ou dinheiro a partir de textos feministas ou de ganhos com o movimento feminista por igualdade no mercado de trabalho, o oportunismo individual prejudicou os apelos à luta coletiva.
bell hooks
Não há capitalismo sem racismo.
Malcolm X
Não há luta antirracista e antissexista fora da luta de classes. Pesquisas que sintetizam informações estatísticas desagregadas em gênero e raça como o Anuário das Mulheres Brasileiras (2011) evidenciam a situação de indigência e pobreza vivida por mulheres negras e a sua concentração em postos de trabalhado vulneráveis como o trabalho doméstico e o de cuidados em regiões metropolitanas e Distrito Federal. Os recentes estudos sobre relações de gênero no mundo do trabalho pouco têm avançado em considerar a questão racial como um dos principais elementos na distribuição de lugares e papéis sociais que constituem as desigualdades na sociedade capitalista.

Esse silenciamento pode ser explicado pela maneira como vêm se consolidando os estudos feministas e de gênero nas universidades brasileiras com produções teóricas cada vez mais sofisticadas e distanciadas da realidade de mulheres pobres e racializadas que compõem parte significativa da força de trabalho. Para bell hooks (1984), “tem sido mais fácil para as mulheres brancas que não vivenciam opressão de raça ou classe se concentrarem exclusivamente no gênero”.
Nas décadas de 1970 e 1980 feministas negras como Angela Davis, bell hooks e Lélia Gonzalez já apontavam que a luta antirracista é indissolúvel da luta de classes. A recusa de feministas em reconhecer outras experiências de mulheres (que não as brancas, universitárias e de classe média) suprimiu a conexão entre raça e classe, escamoteando a situação de privilégio de um seleto grupo de mulheres forjado pelo discurso da “opressão comum”.
Nancy Fraser (2009) lembra o quanto o feminismo prosperou no momento da ascensão do neoliberalismo em que as reivindicações por justiça foram substituídas em função do reconhecimento da identidade e da diferença, reprimindo a memória de um igualitarismo social. A promessa emancipatória do feminismo, aos poucos deu lugar aos interesses individuais de mulheres privilegiadas que almejavam a igualdade com os homens de sua classe. As lutas feministas foram facilmente cooptadas pelo pensamento burguês à medida que mulheres brancas foram beneficiadas pelo movimento.
O capitalismo não cria desigualdades raciais e de gênero, ele as apropria. O racismo e o sexismo operam de modo a criar disputas dentro da própria classe trabalhadora gerando privilégios na competição por ocupações do mercado de trabalho. A divisão sexual do trabalho (HIRATA; KERGOAT, 2007) em que há, supostamente, trabalhos de mulheres e trabalhos de homens, sendo os desses últimos mais valorizados, não funciona da mesma maneira para todas as mulheres. A experiência de mulheres negras na diáspora é a experiência do trabalho, sempre estivemos nas ruas oferecendo todo tipo de serviço.
Cada vez que mais e mais mulheres passaram a ocupar o mercado de trabalho, foi preciso que outras assegurassem seu trabalho doméstico criando uma subdivisão de classe no interior da divisão sexual do trabalho (ÁVILA, 2010). A delegação de tarefas, além de não proporcionar a divisão igualitária do trabalho reprodutivo entre homens e mulheres, perpetua as desigualdades entre mulheres, assim como as desigualdades raciais, já que são as mulheres negras que historicamente ocupam o lugar do trabalho doméstico remunerado.
Se a autocrítica faz parte da ação e da elaboração teórica dos feminismos, como alguém pode considerar a si mesmo como feminista sendo liberal e racista? Muitas organizações contemporâneas de mulheres negras sequer utilizam o termo “feminismo” para designar sua prática política. No entanto, o que costumamos nomear de prática feminista negra ou pensamento negro feminista é o conhecimento gerado a partir da própria experiência em resposta às opressões que interseccionam gênero, raça, classe e sexualidade (COLLINS, 2012), afirmando um posicionamento crítico ao feminismo hegemônico que pouco tem nos representado. É necessário refletir sobre qual emancipação queremos, pois as lutas antissexistas e antirracistas por si só não abalam as estruturas do capitalismo que, por seu oportunismo sistemático, apropria-se das desigualdades raciais e de gênero para acirrar a exploração econômica e fragmentar todas as formas de resistência.
Referências:
ÁVILA, Maria Betânia. Divisões e tensões em torno do tempo do trabalho doméstico no cotidiano. Revista do Observatório Brasil da Igualdade de Gênero. Edição especial – Tema: Trabalho e Gênero. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2010. p.67-76.
COLLINS, Patricia Hill. Rasgos distintivos del pensamiento feminista negro. In: JABARDO, Mercedes (Ed.). Feminismos negros: uma antología. España: Traficantes de Sueños, 2012. p. 99 a 134.
DIEESE. Anuário das mulheres brasileiras. São Paulo: DIEESE, 2011.
FRASER, Nancy. O feminismo, o capitalismo e a astúcia da história. Mediações. Londrina, v. 14, n. 2, p. 11-22, jul./dez. 2009.
HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. São Paulo, Cadernos de pesquisa, v. 37, n. 132, set.-dez. 2007, p. 595-609.

HOOKS, bell. Feminist Theory: from margin to center. Boston and Brooklyn: South End Press Classics, 1984.

sábado, 26 de julho de 2014

Banheiros, próteses de gênero: uma análise para além da sujeira

Texto divulgado pelo blog Ensaios Sobre Gênero. Nele, o autor discute sobre as questões de masculinidade e feminilidade nos banheiros públicos, fazendo uma analogia à sociedade e suas diretrizes na construção do gênero, seja ele feminino ou masculino. Reportagem divulgada em 04/05/2012 (http://ensaiosdegenero.wordpress.com/). (Rodrigo Andrade)

Descrição para cegos: imagem do interior de um sanitário masculino.

Por Lucas Passos
Ocupado ou livre, banheiro masculino ou feminino, homens ou mulheres, chapéu masculino ou feminino, damas ou cavalheiros, pictograma masculino ou feminino – o que há por trás dos banheiros públicos, dos mictórios, daquelas cabines onde você, estando apertado ou não, vai fazer merda, mijar, os dois, alguém está com diarréia? Aliás, parece justo supor que existe um mais do que a matéria, do que a organização, do que o pictograma masculino ou feminino, um tipo de relação de poder que seria anterior a essas representações e que fosse mesmo o lugar por onde elas emergiram? O banheiro público está a serviço de quem? Da merda, da urina? Pensemos, por exemplo, a partir do texto Banheiros públicos segregados: mais um ataque aos LGBT, de Adriano Senkevics nesse blog, no cartunista Laerte Coutinho, indo ao banheiro feminino e sendo barrado, depois de reconhecido, porque no “fundo da cena”, além das roupas femininas, do cabelo longo, da maquiagem, Laerte é homem e Laerte deve ir ao banheiro masculino, ao banheiro que está sob o signo de “cavalheiros”, “chapéus masculinos”, o famoso pictograma masculino que indica que aqui sim é um banheiro para homens!

De fato, os sanitários públicos estão a serviço da merda e da urina, e, segundo Beatriz Preciado em Basura y Gênero: Mear/Cagar. Masculino/Feminino (2002), são espaços de gestão do lixo corporal nos espaços urbanos que foram generalizados em cidades europeias a partir do século XIX, mas também são espaços que surgem e são impostos pela burguesia dessa época, estabelecendo novos códigos conjugais e domésticos, ao mesmo tempo que exige uma redefinição espacial dos gêneros. Voltando a Laerte ou qualquer outra pessoa que vai ao banheiro público, que está indo neste momento ou que irá, vemos que independente se esse “eu” vai mijar ou cagar, está com diarreia ou não, o sanitário público exige uma redesignação sexual, uma evocação performativa do gênero que se iguala àquela fundadora do sujeito na “mesa de nascimento”. Você é homem ou mulher? — o banheiro “pergunta” ao “eu”, da mesma forma que o médico se pergunta sobre o sexo dos bebês de suas pacientes, e de novo, homem ou mulher, masculino ou feminino, damas ou cavalheiros, o banheiro trabalha para a mesma lógica excludente e exclusiva do sistema sexo/gênero.
Aparentemente, argumenta Preciado (2002), o espaço público da sujeira corporal parece colocar-se a serviço de necessidades naturais mais básicas, quando, na verdade, sua própria organização opera silenciosamente como a mais discreta e efetiva das, no sentido encontrado em Teresa de Lauretis, tecnologias de gênero. Assim, os sanitários públicos, sustenta a autora, são cabines de vigilância de gênero, espaços públicos que avaliam a adequação de cada corpo nos códigos vigentes da masculinidade e da feminilidade, de forma que você se dirige ao banheiro e na porta deles existe a interpelação do gênero: masculino ou feminino?
Mas não se enganem, conforme nos alerta Preciado, no banheiro não importa que necessidade fisiológica você fará, a única coisa que importa é o gênero, ele não é o lugar de se desfazer da urina e da merda, mas antes, o lugar de refazer-se do seu gênero. A autora cita ainda os banheiros do aeroporto George Pampidou, em Paris, nos quais existem visitantes casuais dos sanitários femininos que inspecionam o gênero das usuárias para certificarem que elas são realmente mulheres, assim essa pequena multidão de mulheres “femininas” se misturam às demais no banheiro e atuam anonimamente, mas controlando o acesso de novos visitantes aos vários compartimentos privados, os sanitários, e qualquer suspeita (cabelos excessivamente curtos, sem maquiagem, passo muito afirmativo) as pessoas são barradas e interrogadas sobre a coerência de sua escolha de sanitário, uma vez que “o banheiros dos homens está a direita!”.
Superando este exame, Preciado nos descreve a organização desses sanitários femininos: as cabines, cômodos de 1 por 1,50 m², tentam reproduzir em miniatura a privacidade de um banheiro doméstico, mas o fato é que você (mulher!) entra no sanitário, vai a uma cabine, fecha a porta, abaixa as “saias”, senta-se em um vaso branco de 40 a 50 cm de altura, quanta diminuição de si própria! A feminilidade, argumenta a autora, é produzida por essa diminuição de toda função fisiológica do olhar público, enquanto que, se nos dirigirmos para os banheiros dos rapazes, na altura de 80 a 90 cm estão os mictórios na visão pública e de outro lado espaços fechados, privados, divididos, com portas de trinco e vasos semelhantes com o do banheiro das mulheres.
Essa lei arquitetônica, vinda de princípios do século XX, estabelece uma divisão precisa no banheiro masculino, separando as funções: mijar-de-pé (mictório)/cagar-sentado (vaso). De forma que, segundo a autora, a masculinidade heterossexual se produz mediante a separação imperativa entre o genital e o anal, assim o mictório cresce desde a parede e se ajusta ao corpo masculino “naturalmente”, atuando como uma prótese de masculinidade, facilitando a postura vertical e ereta para mijar sem receber respingos. Mijar-de-pé-entre-homens, ela argumenta, é uma atividade cultural que gera vínculos de sociabilidade entre todos aqueles que ao fazê-lo são reconhecidos como homens, sendo, portanto, umas das performances construtivas da masculinidade heterossexual moderna.
Claramente, segundo Preciado (2002), duas lógicas opostas estão em questão, uma vez que, por uma lado, o banheiro feminino é a reprodução de um espaço doméstico no espaço público e por outro lado, o banheiro masculino são espaços públicos que intensificam a visibilidade e a posição ereta que definem o espaço público como espaço de masculinidade. Ainda, conforme a autora, a divisão espacial entre as funções genitais e anais nos banheiros masculinos, protege contra uma possível tentação homossexual (uma releitura da autora em Lee Edelman nos alerta para alerta para a ordem que o ânus masculino deve abrir-se somente em espaços privados e longe da visão de outros homens, caso contrário, poderia suscitar um convite homossexual), ou, antes mesmo, condena-a no âmbito da privacidade, assim o vaso é uma prótese de gênero que funciona como símbolo de feminilidade abjeta/sentada, longe de qualquer visão pública.
Enfim, o texto da autora proporciona várias análises entre, como sugere o próprio título, sujeira/gênero, mijar/cagar, masculino/feminino, mostrando a ordem pela qual operam os banheiros públicos, uma vez que eles não são cabines de sujeiras, do lixo corporal, mas cabines de gênero, conforme a própria autora, vamos no banheiro para fazer as nossas necessidades de gênero, reafirmar os códigos da masculinidade e da feminilidade heterossexual no espaço público. Preciado nos alerta para que não nos enganemos, uma vez que a máquina capital-heterossexual não desperdiça absolutamente nada, cada momento de evacuar, é tomada como ocasião de reproduzir os gêneros e as máquinas que comem nossas sujeiras são normativas próteses de gênero.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Nome social no Enem

A matéria a seguir destaca a importância histórica da medida tomada pelo MEC de incluir o nome social no seu edital do Enem 2014. Essa contribuição fortalece o rompimento das desigualdades de gênero. (Jéssika Queiroz)

Transexuais e travestis têm a oportunidade de usar o nome social no Enem

Descrição para cegos: uma mão escreve Maria da Silva e logo acima o nome José está rabiscado.


   A liberação foi autorizada pelo MEC, mesmo não estando no edital do exame. A medida já era esperada pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (AGBLT), que se reuniu em audiência com o ministro da Educação, José Henrique Paim. A associação abraçou a causa desde a última edição do Enem, quando candidatas transexuais relataram constrangimentos ao assinar um formulário destinado a estudantes que não tinham identidade ou documentos oficiais. Segundo Toni Reis, secretário de Educação da AGBLT, embora Paim tivesse garantido que a inclusão do nome social já constaria do edital do Enem 2014, a opção discriminada no site já é um avanço.
   Mais de 68 transgêneros se inscreveram. A medida foi atrativa e espera-se que o número de candidatos aumentem porque, diferente do que ocorreu ano passado, as pessoas não vão passar por constrangimentos no dia da prova. A atual dificuldade é: o nome social não consta no cadastro, ele foi passado por telefone pelos interessados. O fim do prazo para a solicitação foi junto com o fim das inscrições. Agora, o Inep está ligando e confirmando o nome social, a forma de tratamento e o banheiro que quer utilizar.
   Algumas instituições de ensino superior, como a Uerj, a Universidade Federal de Sergipe (UFSE) e o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina (IFSC) já permitem a adoção do nome social. Na educação básica, em grande parte do país também já fazem o uso do nome social sem grandes problemas. 

Matéria originalmente publicada no  Brasileiríssimos

terça-feira, 22 de julho de 2014

Libertem-se!

Descrição para cegos: slogan da campanha "Homens, Libertem-se".
Homens são criados para comandar o mundo. Desde as mamães que fazem questão de que seus filhos não lavem os pratos até a educação sexual que manda “pegar geral”. A construção da masculinidade segue padrões rígidos que vão da primeira bolinha de futebol até a obsessão pelo tamanho dos órgãos genitais. O problema é que essa construção social é frágil, e quando ameaçada por qualquer demonstração de fraqueza, afeto ou qualquer coisa que seja lida como “feminina”, torna-se sinal de fragilidade ou emasculação. 

Essa hipermasculinidade tão incensada e tão insensata que se julga séria vem sendo discutida através da campanha “Homens, Libertem-se/MenGetFree”, do coletivo mo[vi]mento MG/RJ em parceria com o grupo de teatro The Living Theatre, de Nova York. 

A ideia da campanha é questionar o sistema patriarcal e as dimensões da construção do homem, promovendo maior respeito entre os gêneros. 


A campanha pede a libertação dos homens pela quebra dos aspectos que giram em torno do “gênero masculino”, pelo desfrutamento da liberdade de ser quem é e não o que a sociedade machista impõe. Somos muitos, todos diferentes e o respeito por nossas diferenças não deve ser pedido e nem conquistado, respeito é um direito universal.

Jéssika Queiroz

domingo, 13 de julho de 2014

A prostituição na Paraíba

Descrição para cegos: foto de Loreley Gomes, sentada em uma das salas de aula da UFPB.
A professora Loreley Gomes Garcia, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba, tem realizado pesquisas sobre a prostituição. Um de seus mais recentes trabalhos foi sobre a prostituição no interior da Paraíba, nas cidades de Mamanguape, Mari, Sapé e Guarabira. Para muitas pessoas, a prostituição é vista como atividade indigna, mas a pesquisa revelou que existem mulheres prostitutas que têm apoio da família e da comunidade. O repórter Luís Marques explica mais sobre esse assunto no áudio abaixo. 


quinta-feira, 10 de julho de 2014

Homens vestidos de mulheres nos anos 50

Descrição para cegos: um chaveiro com a figura de uma mulher
 e ao fundo uma perna masculina.
“Homem que é homem se veste como tal”, “vai usar essas roupa coladinha de mulherzinha, é?”. Essas falas, provavelmente, muitas das pessoas que leem este post já ouviu de alguém. Um dos pontos polêmicos sobre as questões de gênero é quando se fala na dissociação entre orientação sexual e identidade de gênero. Enquanto a primeira diz respeito a atração sexual, a segunda é o gênero com que a pessoa se identifica. Muitas pessoas argumentam, erroneamente, que se um homem gosta de se vestir como mulher, então, automaticamente, ele será gay.



Para desmistificar essa falácia, uma série de fotos que mostram homens travestidos durante os anos 50 e início dos anos 60 foram divulgadas pelo site Catraca Livre, numa matéria sobre a Casa Susanna, pequeno refúgio de travestis heterossexuais em Catskills, Nova York, EUA. As fotos mostram um grupo de homens, travestidos, em rodas de conversas, fumando, posando para a foto ou aguando as plantas. Registro fotográfico útil para conscientizar sobre a não temporalidade das manifestações de gênero. Para acessar o link clique aqui.

Luís Marques