terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Toda dona de casa precisa


Descrição para cegos: poster mostra as frases "Quem teve 'outra'
já passou para a Clock", "Uma perfeita cozinheira às suas ordens",
"Como USAR e CONSERVAR a sua panela de PRESSÃO", próximas
ao desenho de uma mulher próxima e uma panela.

Por Dani Fechine



“Toda dona de casa precisa”, era que assim que um homem, já com os seus 45 anos, vendia um kit gás. O material facilitava a troca do gás, requerendo menos força e pressão. “Pra sua esposa, sua mulher, sua irmã, sua mãe, sua tia”, ele continuava a vociferar um machismo arraigado não só na sua criação, mas também na sociedade. Nesse momento, o calor já convocava todos do Terminal de Integração a delirar entre os próprios devaneios. Os mais velhos achavam graça do seu merchandising. Eu, covarde, apenas emburrara-lhe a cara.
Situações como essa acontecem diariamente, sob variadas formas. E atitudes de inibição também estão distribuídas aos montes. Ouvir um homem gritar em um ambiente público, recheado de crianças, mulheres, idosos, que utensílios domésticos servem apenas para mulheres é deprimente e humilhante. Mas o moço parecia convicto da sua fala. Para ele, era essa a melhor maneira de conseguir algumas clientes.

 Uma garota que aguardava o ônibus ao seu lado trajava um short jeans e um tênis preto. O cabelo negro era curto e a pele alva como neve. Seus olhares para o moço machista foram de reprovação. Mas, também em silêncio, afastara-se dele. Enquanto isso, a sua mãe achava graça.
É tão revoltante ser colocada num lugar onde não se quer estar, que a indignação muitas vezes ultrapassa a possibilidade de uma resposta, ou uma conversa franca com quem está a disseminar por aí papeis e funções tidos como femininos e que, por uma questão de sabedoria humana, as moças não querem ocupar. A percepção de que a mulher nasce também com duas pernas, dois braços e um cérebro é tardia e por vezes escassa entre os homens. Parece difícil aceitar que a independência é muito mais prazerosa que trocar o botijão de gás. A dona do lar foi substituída pela provedora, pela trabalhadora, pela administradora e pela mulher independente. Infelizmente elas ainda não foram notadas.
Mas o homem moreno, de calças de Brin, camisa social e chinelos, poderia até ser perdoado, não fosse o desfecho de uma venda mal sucedida. Falou, em bom tom, que o kit gás, a qual ele vendia por cinco reais, era preciso ser adquirido para que “a sua mulher não chame mais o vizinho”. Completou dizendo que o vizinho levaria não só o botijão de gás, mas também a moça que ajudara a trocá-lo. Colocou-nos numa posição de objeto mais barato que o kit. Um utensílio gratuito, levado como brinde, para o primeiro que batesse à porta. Enquanto isso, algumas de nós indignadas, mantivemos a postura séria. É preciso que alguém perceba que basta uma brincadeira de mau gosto – ou o merchan de um produto doméstico – para mexer no calo de quem luta diariamente para corrigir falhas costumeiras na boca da população.
Admira-me, principalmente, ver o rapaz puxar papo com as senhoras ao lado. “Minha ex-mulher vai voltar pra mim. Ela volta. Ela gosta de dinheiro. Homem tem sempre que ter dinheiro, pra poder dar a mulher”. Poderia ter concluído o meu dia sem essas ofensas indiretas. Porque ali, entre tantos ônibus e homens, a única coisa que eu enxergava eram mulheres batalhadoras, a caminho do trabalho ou da universidade, buscando uma profissionalização e um futuro que fizesse honrar toda a luta feminista em prol, inclusive, daquelas que não acreditam do feminismo. Emburrei-me até a propaganda do rapaz terminar. Em seguida, olhei ao redor. A partir desse momento todas as aspas se fizeram retrógradas. Somos mais que um botijão de gás, seu moço. 

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